sábado, agosto 28, 2004

188. PARA A ESCOLA 

No velho casarão do convento é que era a aula. Aula de primeiras letras. A porta lá estava, com fortes pinceladas vermelhas, ao cima da grande escadaria de pedra, tão suave que era um regalo subi-la. Obra de frades, os senhores calculam... Já tinha principiado a aula quando a Helena entrou comigo pela mão. Fez-se um silêncio nas bancadas, onde os rapazes mastigavam as suas lições e a sua tabuada, num ritmo cadenciado e monótono, cantarolando. E ouviu-se então a voz da Helena dizer para o Sr. Professor, um de óculos e cara rapada, falripas brancas por baixo do lenço vermelho, atado em nó sobre a testa:
- Muito bons dias. Lá de casa mandam dizer que aqui está a encomendinha.
Oh! Oh! A encomendinha era eu, que ia pela primeira vez à escola. Ali estava a encomendinha!
- Está bem, que fica entregue. E lá em casa como vão?
E quando o velho professor me tomava sobre os joelhos, a Helena enfiava-me no braço o cordão da sacola vermelha, com borlas, onde ia metido nem eu sabia o quê. Meu pai é que lá sabia... E ali estava eu entre os joelhos do Sr. Professor, com o boné numa das mãos e a saquinha vermelha na outra, muito comprometido. A Helena, que sorria contrafeita, baixou-se para me dar um beijo, e disse-me adeus.
Choraminguei, quis sair na companhia dela.
- Não, agora o menino fica - disse-me a Helena. - Isto aqui é uma escola onde se aprende a ler. - E agachando-se, diante de mim: - Olhe tanto menino, vê?
- Mas fica tu também... - disse-lhe eu então.
Nas bancadas houve hilaridade geral. O mestre teve de intervir, iracundo:
- Caluda, sua canalha! Não vêem que está gente de fora? Caluda, que vai tudo raso com bolaria!


Trindade Coelho (1861-1908) - Os Meus Amores - Contos e baladas, 16.ª Edição, págs. 125 e 126, Portugália Editora, Lisboa, 1978.

Também eu não queria ir para a escola.
Ameacei. Havia de ir às castanhas do Malhão e os meus pais ainda me iriam visitar à prisão!
Nem assim resultou. Manhãzinha, no primeiro dia de aulas, os meus colegas de Vila Deanteira bem me chamavam em frente à minha casa. Não ia e não ia!
O meu pai teve de intervir. A minha mãe, para acalmar os ânimos, resolveu ir levar-me. A escola era e ainda é em S. João de Areias e fizemos o caminho a pé, uma parte dele ao colo de minha mãe. Ainda hoje sinto vergonha por isso! O bom do Manel Gago, já então na 3.ª classe e meu grande amigo, esperou por mim.
Ao chegar à escola, a minha mãe dirigiu-se à metade das meninas, onde leccionava uma professora que, dizia-se, ensinava bem e era exigente. É claro que ali só entravam alguns meninos e portanto a professora rapidamente indicou a metade dos rapazes para onde eu deveria ir.
Já todos tinham entrado. Olhei para dentro da sala e era a confusão total. Os alunos falavam alto e andavam de carteira em carteira. A minha mãe entregou-me ao professor e eu, ainda com as lágrimas nos olhos, lá me fui sentar na fila da 1.ª classe. O professor permitiu que o Manel se sentasse (só nessa manhã!, deixou ele bem claro) na minha carteira.
Foi o primeiro acto de gratidão, de muitos, que devo a esse meu primeiro mestre; deixava-nos andar à solta na sala e dava-nos "licença de lá ir fora" em grupos de 7, 8 e mais, para fazermos as nossas "necessidades" no recreio da escola (não havia casas de banho), e nós aproveitávamos para jogar uma partidinha rápida de futebol.
A manhã desse primeiro dia foi passada a fazer um desenho. Uma pequena ponte, num lado da qual se encontrava um moinho que por artes mágicas sugava as águas que faziam mover as mós, e, do outro, um burro carregado com as taleigas de farinha e puxado pelo moleiro.
Vim almoçar a casa já feliz. Nunca mais saí da "escola"!


domingo, agosto 22, 2004

187. REGRESSO 

Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! minha serra, minha dura infância!
Como os rijos carvalhos me acenaram,
Mal eu surgi, cansado, na distância!

Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra morta
Dos versos que o desterro esfarelou.

Depois o céu abriu-se num sorriso,
E eu deitei-me no colo dos penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso


S. Martinho de Anta, Natal de 1951

Miguel Torga - Diário VI, in "Poesia Completa", 2.ª Edição, pág. 446, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2002


sexta-feira, agosto 20, 2004

186. O SOL É GRANDE, CAEM CO'A CALMA AS AVES 

O sol é grande, caem co'a calma as aves,
do tempo em tal sazão, que sói ser fria;
esta água que d'alto cai acordar-m'-ia
do sono não, mas de cuidados graves.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu'em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
incertos muito mais que ao vento as naves.

Eu vira já aqui sombras, vira flores,
vi tantas águas, vi tanta verdura,
as aves todas cantavam d'amores.

Tudo é seco e mudo; e, de mestura,
também mudando-m'eu fiz doutras cores:
e tudo o mais renova, isto é sem cura!


Sá de Miranda - Poesia e teatro, selecção, introdução e notas por Silvério Augusto Benedito, págs. 162-163, Ulisseia, 1989


quarta-feira, agosto 18, 2004

185. RETRATO DA FAMÍLIA DO 1.º VISCONDE DE SANTARÉM 



Domingos António de Sequeira, (Lisboa, 1768 - Roma, 1837) - Retrato da Família do 1º Visconde de Santarém, 136 x 177 cm, 1816.

Nas visitas anteriores ao MNAA nunca liguei a esta obra.
Melhor dizendo, passava por ela, não me sentia indiferente, mas passava à frente.
Este ano passou a figurar entre as minhas preferidas.
As nossas recentes histórias da arte em Portugal copiam-se e não passam da referência ao aspecto abonecado das figuras.
Vejamos o que nos diz o referido Roteiro do MNAA, págs. 46-47: "É difícil restringirmos as apreciações que tecemos sobre uma família. Como tal, concentremo-nos na diferenciada distribuição das figuras do Retrato da Família do 1.º Visconde de Santarém contra o fundo neoclássico da arquitectura do aposento, fundo de abstracção geométrica que vai ser constante em tantos dos seus retratos. Apontemos sobre a mesa a escultura do rei D. João VI, alegórica presença de um monarca a residir no Brasil; sentado no canapé, apartado do grupo, um filho que provavelmente já morrera; e no quadro dentro do quadro, no mais literal sentido da imagem, o seu irmão, também ele no Brasil. É um quadro, de facto, de outros familiares e comporta-se como um espelho do outro lado do qual a família se organiza de outra forma. Através do tranquilo retrato familiar, Sequeira nomeia o presente, a ausência e a morte e deixa duas folhas de papel naturalmente caídas no chão".

terça-feira, agosto 17, 2004

184. ROTEIRO DO MUSEU NACIONAL DE ARTE ANTIGA 



Gosto muito do Museu Nacional de Arte Antiga.
Todos os anos o visitamos. Escolhemos sempre um Domingo. Aproveitamos a entrada ser grátis de manhã, visitamos um parte até há hora de almoço, almoçamos no jardim, olhamos o Tejo e depois continuamos a visita.
Este ano fomos guiados por um excelente Roteiro, elaborado pela Dr.ª Ana de Castro Henriques.
É relativamente pequeno, manuseável e bonito.
"Todo o Museu, e por maior razão, um Museu de Arte como este, é um lugar de partilha de informação e de comunicação, mas também de partilha de afectos; este roteiro do Museu Nacional de Arte Antiga, para além de uma bem elaborada rede de informação útil, é um testemunho da relação afectiva que a autora soube tecer a partir do espaço e dos objectos que a cercam e que constituem hoje o seu local de trabalho" (José Luís Porfírio, Director do MNAA).
Aqui fica a proposta de compra do roteiro e de uma visita ao Museu.

segunda-feira, agosto 16, 2004

183. JÁ ESTOU NA MINHA TERRA! 

Chegámos!
Já tinha saudades da minha aldeia. Não consigo passar os meus anos longe dela!
A minha ligação a esta terra sempre foi muito forte e de facto este território sempre constituiu para mim uma Mãe-grande.
Quando vivi longe da minha terra e me surgiam problemas, corria para cá... não era só para as saias dos meus familiares... para perto das pessoas com quem brincara em pequeno... era também para este território... para estas árvores, para perto destas penedias, para estes espaços físicos junto dos quais, por inexplicável força telúrica, me sentia protegido...
Por isso... gosto tanto da minha aldeia e tudo o que faço por ela, faço-o para pagar o conforto espiritual que me tem dado...

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